1. Características e conceitos da Produção Tradicional
Para tratar da Manufatura Enxuta é preciso inicialmente conhecer os aspectos gerais de organização da produção antes da existência desse conceito de organização industrial.
Os métodos organizacionais (ou sua falta) utilizados tradicionalmente na gestão da indústria, e que são predecessores ao advento dos conceitos da Manufatura Enxuta, serão aqui referidos como técnicas da Produção Tradicional.
O desenvolvimento da organização da indústria atravessou alguns séculos da história humana, e ocorreu com maior intensidade durante todo o século XX. Compreender brevemente alguns aspectos gerais deste desenvolvimento é fundamental para abordar os conceitos da Produção Tradicional.
Na história os primeiros registros que indicam a realização de uma produção em maior escala de produtos mais complexos, ocorreu por volta de 1500 no Arsenal de Veneza. Na ocasião, pessoas, recursos e materiais foram organizados num local destinado exclusivamente a fabricação de várias embarcações de guerra.
Apesar de casos isolados como este, toda a produção de bens mais complexos era realizada de forma artesanal até por volta do século XVI. Somente por volta do século XVIII, as indústrias têxteis iniciaram produções concentradas num único local de trabalho, com alto grau de mecanização e dependência massiva de mão de obra, o que hoje pode-se designar como um estereótipo de uma fábrica.
Outro fator que contribuiu para início da mecanização e aparecimento das primeiras indústrias (principalmente na Inglaterra) foi o desenvolvimento do motor a vapor por James Watt. A invenção da máquina a vapor foi notadamente uma quebra de paradigma na sociedade, que adicionou uma nova forma de gerar trabalho, por meio de uma máquina, algo que antes somente era enxergado como possível a partir do trabalho humano, do uso da força animal ou da natureza.
Entre o fim do século XIX e início do século XX foi quando ocorreu o surgimento de indústrias em diversos segmentos, produzindo todos os tipos de bens em larga escala.
Os conceitos e técnicas desenvolvidas por Henry Ford, criando a primeira linha seriada para produção de um produto mecânico e complexo como um automóvel, e Frederick Taylor com o desenvolvimento da chamada Administração Científica utilizada para melhor organizar a produção, foram o pontapé inicial para organização da produção como a conhecemos hoje, e fundamentaram ao que aqui foi denominado como Produção Tradicional.
A Produção Tradicional é caracterizada pela fabricação em larga escala de produtos padronizados por meio de linhas de montagem ou também em operações tipicamente não adjacentes dentro da planta fabril, prezando pelo alto índice de utilização dos equipamentos e trabalhando com grandes lotes.
Este conceito de organização da produção predominou por quase todo o século XX, e é caracterizado, dentre outros, por alguns fatores principais:
· Máxima utilização dos equipamentos e da mão de obra: na Produção Tradicional existe uma busca incansável pela máxima utilização dos equipamentos e recursos humanos. Isso se traduz com a disponibilização de materiais para serem processados, mesmo que não sejam necessários naquele momento, apenas para garantir que os recursos não ficarão parados por nenhum momento por falta de material. O reflexo dessa prática é um alto nível de estoque;
· Predominância de layout funcional na fabricação e layout em linha na montagem: o layout funcional (ou por processo) é utilizado na fabricação vinculada a formação de itens do produto (usinagem, estamparia, reações químicas etc.). Neste formato cada item é levado ao equipamento necessário em seu processamento naquele momento. Após a fabricação dos itens, estes são enviados para montagem juntamente com eventuais componentes comprados, para serem montados (quando necessário) num layout em linha;
· Produção em grandes lotes para diluir o custo do setup (preparação) por peça produzida: a busca pela maior utilização dos equipamentos mencionada anteriormente leva a preferência da produção de grandes lotes. Produzir assim possibilitará aos equipamentos produzirem longos períodos sem paradas, o que levará a uma redução do custo da preparação, que será diluído em uma quantidade maior de peças produzidas;
· Qualidade é responsabilidade do Controle de Qualidade: Na Produção Tradicional não se entende a qualidade do produto como fruto a atuação conjunta de os todos os processos da empresa, mas sim uma responsabilidade exclusiva do departamento que controla a qualidade. A produção fica com a responsabilidade de produzir, e o controle da qualidade em verificar se tudo está atendendo as especificações;
· Uso extensivo de inspeções para garantir a qualidade: Uma derivação da situação anterior, como não há o engajamento de todos envolvidos com a qualidade do produto, o único modo de garantir que o produto seja produzido com qualidade é por meio de grande número de inspeções no recebimento, durante o processo, e sobre o produto final;
· Relações conflituosas com fornecedores: visando maximizar seus lucros e minimizar os custos a Produção Tradicional entende que o único caminho para se conseguir isso com os fornecedores é exigindo o máximo pelo mínimo custo. Uma relação assim invariavelmente gerar algum tipo de conflito ao longo do tempo;
· Baixa valorização e qualificação da mão de obra direta: A mão de obra é vista apenas como recursos humanos que devem desempenhar seu papel desenvolvendo as atividades que lhes foram designadas sem questionar ou contestar. Não há valorização e incentivo a contribuição humana das pessoas visando melhorar os processos;
· Produção empurrada por um programa mestre de produção: Baseado nas projeções e previsões de vendas realizadas pelo departamento comercial, desdobra-se um planejamento para a produção que é inserido diretamente em cada operação (empurrado). Após iniciado, as operações têm que cumprir este planejamento a qualquer custo;
Estas são características gerais presentes no conceito de Produção Tradicional aqui contemplado como as práticas existentes antes da introdução de métodos Enxutos.
Estas características não estão necessariamente aplicadas em sua totalidade nas empresas, cada empresa aplica em maior ou menor grau de acordo com seu ambiente, profissionalização e busca por melhores práticas.
Elas representam o alicerce sobre o qual a indústria se desenvolveu desde seu embrião. Ao longo do tempo este alicerce foi recebendo melhorias e aperfeiçoamentos, que foram adotados por algumas empresas, mas ainda há uma quantidade significativa de empresas que ainda estão presas a estes fundamentos.
Para melhor compreender estas características da Produção Tradicional e sua funcionalidade na organização da produção, serão descritas nos tópicos a seguir de forma um pouco mais aprofundada.
Com o advento da industrialização (e toda tecnologia associada), buscava-se produzir cada vez maiores volumes de produtos para atender a demanda crescente da sociedade. Observou-se que ao se conseguir produzir maiores volumes, com os mesmos recursos obtinham-se as chamadas economias de escala.
A economia de escala ocorre à medida que crescem os volumes do produto, diluindo-se os custos fixos e fazendo o custo médio por unidade decrescer. Pode-se dizer que o custo unitário médio de um serviço ou mercadoria pode ser reduzido aumentando-se a taxa de produção (desde que se mantenham os custos fixos), e isso ocorre basicamente por dois motivos: (1) os custos fixos são diluídos em mais unidades; (2) os custos de materiais comprados são diminuídos (maiores lotes, maiores descontos).
O desenvolvimento da organização da produção ao longo da primeira parte do século XX (Produção Tradicional) se baseou fortemente neste conceito, o que fez com que as indústrias buscassem altíssimos níveis de utilização dos seus equipamentos mantendo-os produzindo a qualquer custo. Isso ocorria mesmo quando não havia demanda para os produtos, o que invariavelmente resultava em altíssimos níveis de estoques.
1.2. Estudo de tempos e movimentos
O estudo de tempos de forma estruturada na indústria provavelmente teve seu início em 1881, na usina da Midvale Steel Company com Frederick Taylor que, após tornar-se mestre-geral, decidiu tentar mudar a forma de gestão da produção.
O estudo de tempos e movimentos visa padronizar o método e os tempos de realização das atividades, ou seja, apresentar a forma determinada como ideal para desempenhar uma tarefa. Este método é estabelecido para que a atividade possa ser realizada e reproduzida, não importa o momento e a pessoa que a realiza (desde que tenha a habilidade e conhecimento para fazê-lo).
Basicamente o que Taylor fez, foi introduzir na indústria a ideia de que para melhor organizar a produção é preciso sempre se tomar decisões com base em dados, e assim estabelecer os métodos de trabalho. Anteriormente a introdução das ideias de Taylor, que evoluíram e culminaram no que ele chamou de Administração Científica, os métodos eram determinados por conveniência e baseados no “achismo” do responsável.
Após a adoção das ideias de Taylor pela indústria, se desenvolveram técnicas e métodos para melhor compreender a relação do homem com o trabalho. Uma dessas formas é a aplicação do diagrama Simo (ou diagrama duas mãos), em conjunto com os 17 Therbligs criados pelo casal Gilbreth.
Os Therbligs foram desenvolvidos para compreender de maneira estruturada as etapas elementares que compõe a realização de uma atividade manual, geralmente repetitiva, e desenvolvida por um indivíduo apto a desempenhá-la. Estas etapas elementares, por meio dos Therbligs são apresentadas num diagrama Simo.
Dada a natureza da indústria depender em grande medida do trabalho do homem (principalmente em seus momentos iniciais), seu desenvolvimento estudou exaustivamente os métodos de trabalho do homem buscando determinar um método ideal de realização das atividades.
Este conceito de aproveitar a eficiência do trabalho, se juntava ao conceito de economias de escala, buscando a maior produtividade possível e consequentemente reduzir o custo unitário.
1.3. Lote Econômico de Compras/Fabricação
A organização e administração de uma indústria gira basicamente em torno do fluxo e processamento de materiais, o que acaba levando invariavelmente a geração de estoques.
Ao longo do tempo se estudou como conseguir melhor aproveitamento no gerenciamento dos materiais comprados, o que culminou com o desenvolvimento do conceito de Lote Econômico de Compras (LEC). O LEC se baseia em algumas premissas para indicar que pode ser definido um tamanho de lote que minimiza os custos de se fazer pedidos e armazenar os materiais ao longo do tempo.
Este conceito se estendeu para os materiais processados pela produção, o que gerou o conceito análogo de Lote Econômico de Fabricação (LEF).
O conceito do LEC/LEF diz que os custos de armazenar o produto aumentam a medida que se aumenta o tamanho do lote de peças a ser pedido dos fornecedores ou ser fabricados internamente, e que os custos de realizar o pedido ao fornecedor (no caso do LEC) ou os custos de realizar a preparação do equipamento (no caso do LEF) reduzem em função do tamanho dos lotes. A junção destes dois custos leva a uma curva de custo total, onde pode-se obter um custo mínimo.
Os tempos de preparação (setup), que eram historicamente muito altos, influenciam diretamente os custos da produção. Com custos altos devido a setups longos as indústrias tendiam a trabalhar com grandes lotes para seus diversos produtos, mesmo quando não eram necessários.
A definição dos lotes fixos se encaixava bem na ideia das economias de escala e é bem aderente ao cenário histórico de desenvolvimento da organização da produção. O grande problema é que ao assumir que os setups não podiam ter seus tempos reduzidos, levando a altos custos e lotes maiores, se encobria grandes desperdícios vinculados como por exemplo grandes estoques, maiores custos devido a estes grandes estoques, menor flexibilidade, fluxo dificultado etc.
1.4. Materials Requirements Planning (MRP)
Um sistema produtivo é naturalmente um ambiente complexo em função da quantidade de informações geradas a cada instante, o que torna a organização e administração bastante dificultosa sem o auxílio de recursos computacionais.
O Materials Requirements Planning (MRP), ou como adotado em português, Planejamento da Necessidade de Materiais, é um recurso que foi desenvolvido em função da evolução e acessibilidade da informática. Ele organiza a demanda com base em previsões e pedidos confirmados, e detalha ordens que definem os momentos e quantidades das necessidades de materiais para serem liberados, tanto para compra, quanto para fabricação. Esta organização leva criação de uma programação para a produção.
Assim, de forma simples, o MRP permite as empresas calcular quanto e quais tipos de materiais serão necessários baseado na demanda, e em quais momentos precisarão estar disponíveis.
Este modelo utilizado pelo MRP para programar a produção recebeu o nome de produção empurrada devido a forma como ele organiza a informação. Baseado nas necessidades previstas, ele define em quais momentos cada material deve ser processado em cada operação independente da situação daquele recurso no momento.
Assim, um recurso pode ainda estar produzindo o lote de um produto, mas se o momento do próximo produto chegar, a ordem de produção será empurrada para a operação independentemente de já ter concluído o processamento do produto inicial ou não.
Este modelo faz com que os centros de trabalho produzam constantemente, atingindo altos níveis de utilização, e consequentemente alcançando economias de escala.
O conceito da qualidade se desenvolveu ao longo do último século, o que resultou em inúmeras definições e tratamentos. Alguns determinam a qualidade como algo exato e totalmente mensurável, já alguns consideram que a caracterização da qualidade é subjetiva e envolve diversos desdobramentos. Não é incomum, se perguntarmos a duas pessoas o que é qualidade, obtermos duas respostas totalmente diferentes.
A qualidade é um conceito complexo e subjetivo, e que ao longo do tempo obteve muitas definições. Na indústria, de modo geral, o conceito aplicado para a qualidade passou por ao menos quatro fases: (1) era da inspeção, (2) era do controle estatístico, (3) era da garantia da qualidade, e (4) era da qualidade total.
Na primeira metade do século XX, a Produção Tradicional se concentrou nas duas primeiras eras que se limitavam a considerar o produto e os materiais nas questões vinculadas a qualidade. As principais características destas duas eras da qualidade foram:
· Era da inspeção: o principal objetivo nessa primeira fase era atingir qualidade uniforme e satisfatória em todos os produtos após serem fabricados. A evolução da indústria tornou necessário um sistema baseado em inspeções onde características dos produtos eram vistoriadas após a produção para garantir a sua qualidade.
· Era do controle estatístico: os produtos passam a ser inspecionados durante sua fabricação, ao invés de realizar uma inspeção completa (100%) do produto já acabado. As etapas dos processos passaram a ser controlados com ferramentas estatísticas, que possibilitavam a correção dos processos no advento de uma não conformidade durante o processo, evitando a produção de itens defeituosos que geram custos extras.
Estas formas de administrar a qualidade dentro da produção tendem a ser mais reativas, tentando resolver o problema ou após sua ocorrência ou durante ela, o que implicava em altos custos para a produção. Este era o modelo aplicado no conceito primordial da Produção Tradicional.
Na segunda metade do século XX, as duas eras seguintes (garantia da qualidade e qualidade total), apresentaram um conceito mais abrangente para a qualidade, que não envolvia somente o produto, mas toda a organização administrativa e metodológica da empresa.